A química de novos materiais e o seu papel frente aos desafios do novo milênio
Há exatamente 100 anos, a cientista franco-polonesa Marie Curie recebia o Prêmio Nobel de Química pela descoberta dos elementos rádio e polônio, sagrando-se a primeira pessoa a ser laureada duas vezes com um prêmio Nobel na história. Motivado por essa conquista, o ano de 2011 fora escolhido especialmente como o Ano Internacional da Química pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e pela Iupac (União Internacional de Química Pura e Aplicada), visando aumentar a apreciação pública sobre a química e ao mesmo tempo encorajar o interesse da nova geração em seu estudo. Com o slogan “Química – nossa vida, nosso futuro”, de fato, tal celebração nos oferece uma oportunidade única para verificar como a química está presente em nossas vidas e como ela é peça fundamental na pavimentação de um futuro não somente promissor, mas principalmente viável.
Em seus mais de 4,5 bilhões de anos, o planeta Terra experimenta pela primeira vez em sua história uma superpopulação de mais de 6 bilhões de habitantes, resultando em um consumo vertiginoso e desenfreado de recursos naturais, seguido de degradação avançada de ecossistemas como nunca visto antes. Alguns resultados desse cenário já podem ser sentidos pela alta da temperatura média global e pela alta incidência de desastres naturais nos últimos anos. Além disso, entidades ligadas às Nações Unidas vêm relatando potencial desabastecimento global de água e de alimentos dentro das próximas décadas, bem como o esgotamento de poços de extração de petróleo viáveis em menos de meio século.
Adicionalmente, o desenvolvimento tecnológico, observado a partir do último século, vem modificando substancialmente o comportamento e o padrão de consumo do ser humano que, ao buscar dispositivos e utensílios destinados a aumentar seu conforto, assim como sua qualidade de vida, tem gerado a demanda de diversos recursos minerais finitos e muitas vezes pouco abundantes na crosta terrestre. O elemento lítio, que é fundamental para a produção de baterias recarregáveis dos dispositivos eletrônicos modernos e para o desenvolvimento dos carros elétricos, por exemplo, representa somente 0,00018% da composição da crosta terrestre e cerca de 80% de suas reservas mundiais estão concentradas em três países, sendo que 49,1% somente na Bolívia. Situação semelhante é verificada para os elementos do grupo da platina, presentes nos catalisadores automotivos de gases de exaustão, em diversos processos industriais e na confecção de joias, cuja demanda supera o fornecimento há mais de décadas, tendo a África do Sul 87,5% de todas as reservas mundialmente conhecidas.
Nesse cenário, um menor consumo de energia, assim como de recursos não renováveis, faz-se necessário, cabendo à química de novos materiais a resolução ou mitigação da maioria desses problemas através da proposição do emprego de materiais alternativos de menor custo, menor impacto ambiental e maior eficiência. Um exemplo disso é o desenvolvimento de nanocerâmicas piezoelétricas, materiais que possuem a capacidade de gerar corrente elétrica quando deformados por uma pressão mecânica, o que pode tornar realidade o sonho de produzir energia elétrica mediante uma fonte inesgotável e não poluidora. Diversos centros de pesquisas nacionais e internacionais têm trabalhado na criação de materiais contendo tais cerâmicas incorporadas, para aproveitar a energia mecânica gerada pelo tráfego de veículos nas ruas ou até mesmo o tráfego de pessoas em estações de metrô e aeroportos, para gerar eletricidade.
Da mesma forma, o desenvolvimento de nanocompósitos poliméricos envolvendo hidróxidos duplos ou silicatos lamelares, que são nanocerâmicas cuja geometria se assemelha a de pequenas folhas de papel modificadas quimicamente e dispersas em plásticos, vem modificando radicalmente o dia a dia das indústrias automotiva e aeronáutica. Estes materiais podem ser empregados em aplicações estruturais para substituição dos metais tradicionais, tais como painéis e carrocerias de automóveis, e fuselagem e trens de pouso de aviões, reduzindo de forma significativa o peso dos veículos, o desgaste das peças por corrosão química e o consumo de combustível.
O estudo para a obtenção de materiais híbridos a partir de subprodutos agroindustriais com propriedades adsorventes – um sólido que possui a capacidade de reter de forma seletiva alguns elementos ou compostos químicos de um determinado líquido ou gás – também vem despertando bastante interesse no meio científico. Estes materiais atendem aos apelos ambientais de mitigação de resíduos, utilizam matérias-primas de baixo custo, agregam valor à cadeia produtiva agroindustrial e encontram aplicações nobres que vão desde o combate à poluição urbana, através do tratamento de efluentes industriais e remediação de solos, até o uso mais eficaz de medicamentos e nutrientes, com a liberação controlada de fármacos e de fertilizantes, respectivamente.
Dessa forma, a química de novos materiais mostra-se extremamente abrangente e multidisciplinar, avançando sobre importantes fronteiras do conhecimento, tais como as ciências biológicas, a física da matéria condensada e a nanotecnologia. Ao fazê-lo, permite o surgimento de novos tipos de compostos, cada vez mais necessários para garantir o avanço contínuo da qualidade de vida, aliado à tão desejada redução da miséria e da desigualdade humana.
*Maria Lucia Caetano Pinto da Silva é professora de química da Escola de Engenharia de Lorena, da Universidade de São Paulo (USP).